terça-feira, 17 de agosto de 2010

Massagem nos pés funciona


Tem dia que o urubu senta em minha mãe, que pergunta por que ainda está viva.

– Por que Deus não me chama, hein, Deus?

Digo que ela tem tudo para ser feliz, começa o dia com café na cama e... Deitada para dormir, ela resmunga:

– Por isso mesmo. Não faço mais nada, só recebo feito. Nem ando direito, vivo só do sofá pra varanda, da varanda pra cama. Se vejo um desses filmes de hoje, não entendo bem, o mocinho parece bandido, o mundo mudou tanto... Por que continuo viva, meu Deus?

– Pra divertir Deus, mãe, com suas criancices.

Ela me olha desconfiada:

– Você acha que Deus se diverte com as desgraças da gente? Aliás, eu sempre me perguntei por que Deus deixa existir tanta desgraça.

– Porque as desgraças também são Deus, mãe. Já pensou se tudo fosse bonito e bom, se não houvesse dor nem morte?

Ela pensa, concorda:

– Verdade. Eu, por exemplo, já devia ter morrido...

Resolvo então lhe fazer massagem nos pés, com uma pomada de cânfora que ela usa para dor nas juntas, picada de mosquito, tosse e tudo mais. Ela fecha os olhos, abre para perguntar se está doente.

– Não, mãe, massagem nos pés faz bem.

– Faz bem pra que?

– Pra cabeça, mãe.

– Não falo que o mundo virou de ponta-cabeça? Massagem nos pés faz bem pra cabeça...

Digo que é coisa dos chineses, ela sorri lembrando:

– Quando era menina, aprendi na escola que o mundo é redondo, então ficava pensando como é que lá no outro lado do mundo chinês não cai de ponta-cabeça.

Digo que é porque o planeta é muito grande, a força da gravidade puxa a gente para a terra.

– Na Lua, que é bem menor, a gravidade também é menor, a gente pula e vai longe...

– Como é que você sabe, já foi na Lua?

– Astronautas foram, mãe.

– Ah, é, gastaram aquele dinheirão pra dar lá uns pulinhos e espetar uma bandeira. E tanta escola precisando de merenda, de reforma, até de giz.

– Como a senhora sabe, mãe?

– Porque não tô morta, ué, vejo notícia! Pra propaganda e pra gastança de governo sempre tem dinheiro sobrando, mas pra educação e saúde sempre falta dinheiro! Tudo de ponta-cabeça!

Digo que ela não deve se preocupar com isso, afinal...

– ...a senhora agorinho mesmo queria morrer, né?

– Mas ainda não tô morta!

Cubro-lhe os pés, ajeito os travesseiros, ela sempre gosta que lhe ajeite os travesseiros. Sussurra:

– Quando eu for embora, quero levar meus travesseiros. Você bota eles no caixão?

– Boto, mãe.

– Desse jeito aí, o maior por baixo, o menor por cima.

– Claro. Mais alguma coisa?

– Não deixe me enterrarem de ponta-cabeça, com os pés pra frente. Quero ficar cara a cara com seu pai. Ele tá me esperando lá, né?

– Claro, mãe.

– Pois que espere. Não vou morrer logo só por isso. Aliás...

Fecha os olhos, logo começa a ressonar. Massagem nos pés funciona.


texto:Domingos Pellegrini

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